“Tudo tem uma duração. Todos temos. Até o papa tem uma duração, lá foi”, ouvia-se ontem nas redes sociais. É o óbvio, apesar de ter sido dito (e sentido) de um modo muito estranho... Recebi a notícia no final da primeira Eucaristia, através de um amigo e, por momentos, voltamos à igreja para, numa oração simples, agradecer ao Senhor o dom do seu pontificado. Na Eucaristia seguinte, numa outra paróquia – a anteceder a Visita Pascal - tivemo-lo presente nas nossas orações e intenções. Sobretudo em ação de graças!Não sou papista (adorador de papas) nem a minha fé depende dos papas. Cresci com São João Paulo II (morreu também no dia da Visita Pascal numa das comunidades); aprendi e fui amadurecendo com muitos dos escritos de Bento XVI; ouvia e lia atentamente o papa Francisco. Qualquer cristão – minimamente formado e informado – sabe que a fé é encontro com Jesus: «Convido todo o cristão, em qualquer lugar e situação que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de O procurar dia a dia sem cessar» (EG 3). Por isso, o Evangelho é a bússola mais fiável, a Doutrina e Magistério da Igreja os melhores garantes da sua leitura/interpretação.
Curiosamente, não me surpreende o fadário laudatório à volta do papa Francisco. Por duas ordens de razão: uns, sempre o usaram como argumento pessoal para uma putativa fé (subjetiva, seletiva, egocêntrica, sincretista), facilmente contradita pelas opções diárias; outros, montados nas suas afirmações soltas, nos seus apartes livres/dúbios evangelicamente e nas suas iniciativas informais viam o caminho desbravado para levar a água ao seu moinho, mormente o carreirismo, ânsia de protagonismo, culto da personalidade (vaidade sob a capa de humildade), oportunismo demagógico, serviços e mordomias.
Na minha vida, morreu mais um papa, mais um “Servus Servorum Dei”. Li TODOS os seus documentos oficiais. Anotei os critérios e prioridades do seu magistério. Citei-o centenas de vezes, não porque estava na moda ou caía no goto do povo, mas porque acreditava fazer sentido. O respeito que lhe devoto não é maior ou menor que aos seus antecessores. Não alinho em comparações, nem sou tão limitado para cair na tentação de insinuar que há uma Igreja antes do Papa Francisco e outra depois. Só por má-fé ou ignorância supina da História da Igreja alguém poderia ter tacanho atrevimento.
Preocupa-me a excitação de tantos por causa de “pormenores” e o desprezo total pelas grandes causas que ele abraçou: O Evangelho no centro da vida da Igreja (“Evangelium Gaudium”); a Santidade como meta de todos os cristãos (“Gaudete et Exsultate”); o cuidado de todos pela Casa Comum (“Laudato Si”), mormente a ecologia (“conversão ecológica”), o cuidar da Natureza (clima, água), o combate às desigualdades sociais e injustiças; a Fraternidade e Amizade Social (“Fratelli Tutti”), como a solidariedade, defesa dos direitos dos povos, da paz, a luta contra a pobreza e os excluídos; assumir o problema e encontrar soluções para a crise climática (“Laudate Deum”). Não me parece que sejam causas levadas a sério por muitos que o têm elogiado tanto nestes dias… Típico.
Também me preocupa que o recurso, sem mais, a chavões usados pelo papa Francisco seja tão-só a confirmação da demagogia e hipocrisia (oportunismo) tão caros a tantos e tantas. Por exemplo: «Na Igreja ninguém está a mais, há espaço para todos: todos, todos, todos.» E esclareceu (no avião de regresso da JMJ23): «A Igreja é aberta a todos, depois existem leis que regulam a vida dentro da Igreja. Alguém que está dentro está de acordo com a legislação, o que você diz é uma simplificação: “Não pode receber os sacramentos”. Isso não significa que a Igreja seja fechada, cada um encontra Deus pelo próprio caminho dentro da Igreja, e a Igreja é mãe e guia cada um pelo seu caminho.»
Outros sintomas curiosos é ouvir padres carreiristas a elogiar e chorar o papa Francisco, mas a viver em contramão total com as suas maiores denúncias: “O carreirismo é uma lepra. Por favor, nada de carreirismo!” «Pode acontecer que o coração se canse de lutar, porque, em última análise, se busca a si mesmo num carreirismo sedento de reconhecimentos, aplausos, prémios, promoções; então a pessoa não baixa os braços, mas já não tem garra, carece de ressurreição. Assim, o Evangelho, que é a mensagem mais bela que há neste mundo, fica sepultado sob muitas desculpas.» (EG 277)
Também há quem goste de citar algumas das suas frases soltas (fora do contexto, outras são mesmo “fake-news”) e viva em total mundanismo: «O mundanismo espiritual, que se esconde por detrás de aparências de religiosidade e até mesmo de amor à Igreja, é buscar, em vez da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal. É uma maneira subtil de procurar os próprios interesses, não os interesses de Jesus Cristo.» (EG 93) «O mundanismo espiritual leva alguns cristãos a estar em guerra com outros cristãos que se interpõem na sua busca pelo poder, prestígio, prazer ou segurança económica. Além disso, alguns deixam de viver uma adesão cordial à Igreja por alimentar um espírito de contenda. Mais do que pertencer à Igreja inteira, com a sua rica diversidade, pertencem a este ou àquele grupo que se sente diferente ou especial.» (EG 98)
Eu agradeço o dom do seu pontificado e tudo quanto me ensinou. Enquanto uns vão alinhando estratégias para a sucessão (“rei morto, rei posto”); e outros se vão deitando a adivinhar ou sugestionar o que deveria ser a seguir, prefiro meditar, séria e silenciosamente, as palavras finais do seu Testamento: «Que o Senhor dê a merecida recompensa àqueles que me amaram e continuam a rezar por mim. O sofrimento que se tornou presente na última parte da minha vida, ofereço-o ao Senhor pela paz no mundo e pela fraternidade entre os povos.»
(P. António Magalhães Sousa, in Facebook)